Missão de Misericórdia sobre as Águas do Tocantins

MOURA – 67-418 (CFPM 70-212)


O Chamado

Em uma tarde ensolarada, no Planalto Central, há mais de 40 anos atrás...enquanto o horizonte se pintava com tons de laranja e dourado, recebi uma convocação para o que pensei inicialmente seria uma missão de rotina, daquelas de traslado administrativo que o Sexto Esquadrão de Transporte Aéreo – 6º ETA - sempre realizava..., mas desta vez a rotina se transformaria numa Missão de Misericórdia que envolvia uma questão de vida ou morte.

O destino? Carolina, no coração do Maranhão, onde um menino de 5 anos, vítima de uma bala perdida, lutava pela vida. A aeronave escolhida para essa jornada foi o VU-9 Xingu, conhecido por sua robustez, ser pressurizado e pela capacidade de realizar voos em condições adversas. O desafio era grande, mas maior era o sentimento de estarmos cumprindo uma missão nobre, onde o que prevaleceu foi o espírito de ajudar e salvar uma vida.

Preparação para o Resgate

A preparação para o voo foi meticulosa. Cada detalhe, desde a verificação da aeronave até a coordenação com a equipe médica a bordo, foi cuidadosamente planejado. O médico, uma figura de vasta experiência e compaixão, fez um pedido específico: apesar de a aeronave ser pressurizada, deveríamos voar rasante durante o retorno, para minimizar os riscos associados à pressão na cabeça do menino ferido. Este pedido não era trivial, exigiria de nós uma operação não comum para aquela aeronave, navegar rasante para garantir a segurança e o bem-estar do jovem paciente.

Sobrevoando o Centro Oeste alagado

Pousamos em Carolina e já encontramos o nosso paciente aguardando... tinha um ferimento na cabeça, perfurada por uma bala de calibre 22 mm, que tinha se alojado no crânio. Com o menino e seus pais à bordo, iniciamos o nosso voo de volta. A rota escolhida passava por sobre a região do grande Rio Tocantins, uma navegação direta para Brasília, cheia de emoções novas e também interessante por outros aspectos de beleza e significado. Naquela época do ano, o Tocantins estava inundado, transformando a paisagem em um mosaico de água e terra, onde muitas ilhas emergiam das águas como refúgios para a rica fauna local. Voando rasante, pudemos testemunhar diversas cenas da vida selvagem dos animais do cerrado, em sua luta pela sobrevivência, uma metáfora poderosa para a missão que estávamos realizando.

A Jornada de Esperança

O voo se tornou uma jornada de contemplação de raras e únicas paisagens e também de reflexão sobre a fragilidade da vida e a força do espírito humano. O menino, apesar de sua condição, permanecia tranquilo, uma serenidade que contrastava com a tensão e a urgência da missão. Sua coragem e tranquilidade, não normais para a idade, eram um lembrete do que estava em jogo – uma vida jovem, cheia de promessas e sonhos.

Já nós, na condição de seus salvadores, ali estávamos, apoiados na excelência da tecnologia aeronáutica nacional, representando nossa Força Aérea e cumprindo uma Missão extremamente gratificante.

O Desfecho com sucesso

Ao pousarmos, a equipe médica estava pronta para agir. O apoio tinha sido requisitado e o menino foi rapidamente levado ao hospital, onde recebeu o tratamento necessário. A cirurgia de retirada da bala foi um sucesso, restando como um testemunho da eficiência do trabalho em equipe, da dedicação e da tecnologia a serviço da vida.

Reflexões e Legado

Hoje, o “menino”, já quase com cinquenta anos, está por aí, "firme e faceiro", uma frase simples que carrega em si o peso de uma missão cumprida, uma vida salva e a alegria de um futuro restaurado. Essa missão de misericórdia sobre as águas do Pantanal permanece uma das experiências mais marcantes da minha vida. Não apenas pelo desafio operacional que representou, mas pelo que me ensinou sobre a capacidade humana de fazer a diferença, e dele – do “menino”, de enfrentar o perigo com coragem e desassombro.

O VU-9 Xingu, mais do que uma aeronave fantástica de transporte especial, foi o veículo de uma missão maior, uma que transcendeu os limites do voo para tocar o cerne da experiência humana: a interconexão, a vulnerabilidade e, acima de tudo, a esperança. Sobre das águas do Pantanal, voamos não apenas com um menino ferido, e seus pais preocupados e esperançosos, mas com a essência do que significa sermos humanos, enfrentando juntos as tempestades da vida.

FAB! Asas de um Brasil soberano!!!

Hugo Moura(mourahjt@gmail.com)

É gaúcho, nascido na cidade de São Gabriel, interior do Rio Grande do Sul, de onde saiu com um ano de idade. Tendo pai militar, da Arma de Cavalaria, perambulou até os 13 anos por diversas cidades e estados do Brasil até ingressar na EsPCEx em 1967, de onde saiu em 1970 transferido para a AFA, onde se formou oficial aviador, em dezembro de 1973.

Piloto de caça, serviu no 1º/4º GAv e na ALADA/1ºGDA, onde voou e deu instrução nas aeronaves AT-26 Xavante e F-103 Mirage III até 1981, indo então para o Estado Maior da Aeronáutica compor a COPAC (Comissão Coordenadora do Programa Aeronave de Combate), responsável por gerenciar o Programa AM-X.

De lá saiu, no posto de TenCel, para o CTA para ser Chefe de Gabinete do Diretor em 1992. Promovido a Cel em 1995, passou para a reserva em jan. de 1996, iniciando uma vida de empresário na área de Tecnologia.

Voou cerca de 3.000 horas de voo (T-21, T-23, T-37, T-25, AT-26, U-42, F-103, C-95, VU-9 e U-7), a maioria na FAB e numa aeronave executiva (Citation II).

Gosta de empreender, tendo participado da criação/estruturação de diversas empresas das quais é socio, executivo e conselheiro.

É casado com a Maria Selis, e tem 3 filhos e 5 netos.

Mora em São José dos Campos-SP há 30 anos.