CUBOL - REMINISCÊNCIAS (Adaptação)

Quando pratiquei cubol pela primeira vez, eu era apenas um bicho. Não um bicho maceteado, daqueles que equilibravam o bibico sem desmanchar o cabelo ou que já tinham autonomia para dar um V.I. até o Jardim de Alah. Eu era um bicho escroto. Dos que andavam de bibico enterrado no cabeção e batiam continência até para motorista de ônibus.

Não podia ser de outra forma. Cubol era uma das raras modalidades esportivas somente praticáveis pelos bichos escrotos. Nenhum ser humano, independentemente de suas preferências sexuais, sujeitar-se-ia a utilizar o rabo de forma tão anti-convencional.

Isto porque bicho escroto e auto-estima eram coisas incompatíveis. Se o elemento era um bicho escroto, então poder-se-ia afirmar, sem o menor medo de ser feliz, que ele não tinha auto-estima. Por outro lado se o elemento tinha algum grau de auto-estima, então ele poderia ser qualquer coisa. Até paulista, se preciso fosse. Mas não bicho escroto.

“Todo bicho é bacana”, ensinava o saudoso refrão. A frase, de profundo sentido psicossocial, pecava pela estereotipificação da classe. O mesmo se pode dizer de outra máxima, cunhada por autor anônimo e aceita como verdade absoluta pelos preconceituosos: “Todo paulista é babaca”. Eu nunca aceitei esse sofisma. Havia babacas que não eram paulistas e havia paulistas que não eram babacas. Eu mesmo conhecia uns dois ou três. Aliás, é bom deixar bem claro: a babaquice nunca foi monopólio da Babacolândia.

O autor anônimo pecava pela generalidade. Excluía da classe o grupo dos chamados bichos caga-paus. Qualquer criança de colo com razoável conhecimento das tradições epecarianas sabe que o caga-pau, por sua própria natureza, não pode ser

Como estudioso do tema, eu me arrisco a afirmar que a diferença básica entre o bicho escroto e o bicho caga-pau está no teor da auto-estima, e que somente um bicho escroto reunia os requisitos necessários à prática de Cubol.

Como o próprio nome indica, o Cubol utilizava uma bola como argumento - vem daí o sufixo bol - e o cu como ferramenta – vem daí a raiz da palavra. Portanto, tratava-se de um jogo de bola praticado com o cu.

A bola de Cubol tinha a forma e o tamanho de um ovo de galinha de porte médio. Sua densidade era equivalente à de uma bola de sinuca, de onde se conclui que o material utilizado em sua concepção poderia ter sido marfim ou plástico especial. Considerando que a indústria petroquímica apenas engatinhava na década de sessenta, sou tentado a chutar que algum elefante comprometeu-se em favor do desporto epecariano.

O terreno de jogo era o banheiro do alojameiiiiiiiinto, como diziam os babacolandenses. O traje dos jogadores era a rigor, isto é, todos rigorosamente nus, como Deus os colocou no mundo e a natureza tratou de esculhambar.

O piso era previamente preparado com material deslizante à base de água e sabão. Nele, os jogadores, arrastando as respectivas bolsas escrotais, permaneciam sentados durante a peleja. Descolar o bundão do piso era considerado transgressão grave, punível com 50 (cinquenta) pulinhos de galo, sem prejuízo de outras sanções disciplinares.

O formato oval da bola não se dava por acaso. Visava a dificultar o trabalho dos jogadores, exigindo-lhes certa qualidade técnica.

O tamanho das equipes era limitado à capacidade do banheiro e à disponibilidade de bicharal. A regra era liberal nesse aspecto.

A bola, colocada no centro do campo pelo juiz, deveria ser conduzida somente pelas bundas. A luta pela sua posse proporcionava, aos olhos de um observador neutro, um espetáculo que de tão deprimente chegava a ser poético.

A chamada “bola presa” era outra liberalidade do legislador. Aos jogadores era permitido valer-se da rosca como gancho, desde que tivessem bitola suficiente e boa pegada.

A luta pela vitória era obstinada. Ninguém chupava sangue ou botava as mãos nas cadeiras. A mola propulsora desse empenho não era nenhum prêmio reservado aos vencedores, mas a conseqüência da derrota. Nas preleções antes da bundada inicial, os organizadores de meia meia deixavam claro que os perdedores passariam por uma longa e penosa sessão de coquetel Molotovi.

Foi com esse cenário de terror que eu me deparei em março de meia sete, ao adentrar inadvertidamente no banheiro do alojamento. Uma massa de bichos escrotos esfolava o rabo no chão, sob olhares magnânimos de uma comissão de veteranos.

O bicharal desnudo, com suas fisionomias carregadas em tons sombrios, davam claras indicações de que o terreno estava minado e eu deveria evadir-me sem maiores delongas. Dei meia volta e escapei para o alojamento. Ao cruzar a porta, deparei-me com um veterano, que vigiava o próprio alojamento e recrutava “voluntários”. Abordou-me com a autoridade de quem ostentava divisa amarela:

- Jovem mancebo: aonde pensais que ides?

Desmaceteado a dar com o pau, refuguei:

- Sim, não senhor. Não, senhor. Eu só ia tomar um banhozinho de leve, mas é melhor deixar isso prá depois.

- Acho que você está enganado, meu jovem. Na verdade, você viu alguns colegas se divertindo e gostaria muito de participar da brincadeira. Não é isso?

- Acho que sim, senhor.

- Está me chamando de senhor por quê? Eu tenho cara de velho, por acaso?

- Não, senhor.

- Então eu vou quebrar teu galho. Volte até lá dentro, apresente-se à comissão técnica, e implore por uma vaga, ok?

- Sim, mas. Veja bem. Eu não tô podendo...

- Não tá podendo é o cacete, rapaz. Dez.

- Flexões ou pulinhos de galo?

- Dez de cada.

Caí de boca e cumpri a determinação.

- Um, dois, três.... dez. Um, dois, três...

- Tá bom, tá bom, chega. Agora vai lá e executa a missão.

Readentrei no banheiro e apresentei-me ao veterano juiz em exercício:

- Aluno Três Nove Oito, da Oitava Esquadrilha, do Quarto Esquadrão.

- Apresentado. Qual o problema?

- Pelo amor de Deus, você me arranja uma vaguinha prá participar da brincadeira?

- Tá me chamando de você? Como ousas tratar-me assim? Dez.

Caí de boca e cumpri as determinações:

-- Um, dois, três.... dez. Um, dois, três...

- Tá bom, tá bom. Chega. Vou quebrar teu galho. Entra aqui na meia esquerda – disse, abrindo uma clareira no bicharal.

Sentei no chão e entrei no jogo. Fiz cara feia e arrastei o rabo ao acaso, procurando acompanhar o ritmo geral e camuflar-me na escrotidão alheia. Em dado momento, sem mais nem porquê, o juiz apitou uma penalidade máxima a nosso favor. Removeu o bicharal da pequena área e perguntou:

- Cadê o energúmeno que me chamou de você?

Deixei o silêncio fluir frouxo. Berrou:

- Eu perguntei pela porra do energúmeno que me chamou de você.

Apresentei-me, enquanto ainda havia tempo:

- Quem? Eu? Tô aqui, senhor.

- Ok. Você tem cara de idiota, mas eu vou lhe dar a responsabilidade e a honra de cobrar essa penalidade. Bota a bola aqui na marca.

- Bola? Que bola, senhor?

Dirigiu-se à massa:

- Atenção aí, ó bicharal! Cadê a porra da bola?

A rapaziada se agitou para lá e para cá, mas ninguém conseguiu achar nada. O juiz deu nítidos sinais de impaciência:

- Levanta todo mundo, cacete. Vamos ver onde está essa merda!!

Todos se levantaram. Um ovo de marfim, revestido de sabão com água de bunda das mais variadas procedências, desprendeu-se de não sei onde e tombou pesadamente ao chão.

O juiz voltou a dirigir-se à minha pessoa:

- Você é surdo, bicho? Eu não mandei botar a porra da bola aqui na marca?

Apreensivo em tocar no repugnante revestimento, tentei arrastar o ovo com o pé até o local indicado. O veterano emputeceu-se:

- Tá querendo cagar no pau? Vinte.

- Um, dois, três.... vinte. Um, dois, três....

- Chega. Agora pega essa merda com a mão e bota na marca.

Pela primeira vez, vi nascer o instinto caga-pau que jazia adormecido na alma do bicho escroto. Avaliei possibilidades e consequências e conclui: era rabo de foguete; ainda havia espaço para uma concessão adicional. Agarrei a bola de merda com a força de um verdadeiro caga-pau e depositei-a com firmeza na marca do penalty.

O veterano ordenou, como se lesse o Boletim:

- Por ordem do comando, este penalty será cobrado com a língua.

“Só se for com a língua de tua mãe!” – foi a frase que me saiu do peito e ficou presa na garganta. Olhei-o dentro dos olhos para expressar meu potencial, mas o homem cagou mole e continuou a transbordar confiança:

- Então, vamos lá. Agora não. Primeiro você me espera tocar o apito. Depois então você se abaixa e dá uma linguada na pelota.

Tocou o apito. Nada. Permaneci olhando fixamente para o ponto de encontro das paralelas. O homem se aproximou e falou pausadamente, no estilo Lula:

- Eu até agora não tô intendeiindo se você é surdo ou burro. Vou te dar mais uma chance. Se tocar o apito e você não bater essa penalidade máxima, eu vou te foder até a última geração. Entendido aqui no fundo?

Levantei-me. Dei um passo à frente. Olhei-o dentro da alma.

Nesse preciso momento, o veterano que vigiava o alojamento invadiu o campo de jogo e gritou:

- Fudeu! Some todo mundo, rápido. O Oficial de Dia entrou no alojameiiinto.

Bichos e veteranos se espalharam em todas as direções encerrando extemporaneamente minha primeira experiência cubolística.

Adaptação e Colaboração do 67-398 Ubiratan